Sarney comenta possível greve de médicos no Maranhão

 

Salários e greves

Da Coluna do Sarney

Leio que médicos e rodoviários têm greve marcada, a começar segunda-feira. O Sindicato dos Médicos e o Conselho Regional de Medicina, presidido pelo operoso dr. Abdon Murad, dizem que a motivação é o atraso dos salários.

Até hoje mantenho o recorde de enfrentamento de greve: mais de doze mil. Nenhuma por atraso de salários. Estabeleci também a maneira de tratá-las: nunca por enfrentamento, sempre por negociação. A greve é um direito assegurado ao trabalhador para forçar o reconhecimento de outro direito.

Quando assumi a Presidência minha principal missão era a transição, fazer voltar a democracia.

Com 4 dias de governo, em 1985, reabilitei a vida sindical, com uma anistia ampla, fazendo voltar aos cargos de que estavam afastados os dirigentes sindicais. Em seguida decretei o fim da censura.

Legalizei as Centrais Sindicais. Estabeleci a antiga e grande aspiração dos trabalhadores: o salário-desemprego, que desde então — e até hoje — socorre os desempregados em seus momentos mais difíceis. Criei o Vale-Transporte, que paga o deslocamento dos trabalhadores, e o Vale-Alimentação.

Para assegurar a efetividade da Justiça do Trabalho, criamos 340 novas Juntas de Conciliação e Julgamento. Demos o adicional de periculosidade aos eletricitários. Também poucos dias depois da posse aumentamos (Decreto 91.213/85) o salário mínimo em 112%.

Fizemos, com ousadia e coragem, o Plano Cruzado, rompendo com a velha fórmula de combater a inflação pela recessão. O congelamento de preços criou os “fiscais do Sarney”, e nasceram daí os direitos do consumidor e o exercício efetivo da cidadania. Foi a maior distribuição de renda da História do Brasil. Os que viveram aquele tempo e ainda estão vivos são testemunhas da felicidade do povo brasileiro e de como sua vida prosperou.

Vivemos o pleno emprego, com toda a indústria utilizando sua parte ociosa e obtivemos a menor taxa de desemprego em todos os tempos. A média do desemprego no meu governo foi de 3,86% e em dezembro de 1989, meu último ano, ele foi de 2,36%. O trabalhador escolhia onde trabalhar e, assim, consolidaram-se as lideranças sindicais, que a partir daí tiveram vez e voz nas decisões nacionais.

Também, para completar nossa política trabalhista, assinamos muitas Convenções na Organização Internacional do Trabalho que estabeleciam conquistas para a dignidade do trabalhador.

Sempre tive uma grande preocupação pelos direitos sociais. Quando fundamos a Bossa Nova da UDN, em 1959, o manifesto, redigido por mim, tinha como objetivo apoiar a política desenvolvimentista do Juscelino, MAS COM JUSTIÇA SOCIAL.

Vamos torcer para que cada vez mais se desenvolva a proteção aos direitos do trabalhador e à dignidade do trabalho.

Do Blog do Gilberto Leda

Coluna do Sarney: A gangorra da gastança

O Brasil tem uma tradição de ter sempre o orçamento dos gastos públicos como uma obra de ficção.

É sempre um sonho, uma aspiração que se renova a cada ano, quando o Congresso vota a Lei de Diretrizes Orçamentárias e a Lei Orçamentária, fixando receita e despesa. Já se sabe que não vão ser cumpridas. E do mesmo modo vêm a cada ano os decretos de contingenciamento orçamentário: corte linear nas despesas que oscila entre 10, 20% — ou o número que vier na cabeça do Ministério do Planejamento. Outra ficção, também não são cumpridos.

Quando ocupei a Presidência da República o Brasil ainda tinha a mania de burlar o verdadeiro orçamento tendo três orçamentos: o Orçamento Fiscal, o Orçamento das Estatais e o Orçamento Monetário. Para complicar tudo isso, em que nunca se sabia o verdadeiro orçamento, tínhamos a conta de movimento no Banco do Brasil, onde o governo podia sacar sem fundo nem limites.

Aventurei-me e fiz a grande reforma, acabando com a conta de movimento e, ao mesmo tempo, criando a Secretaria do Tesouro e o SIAFI — que deu transparência às contas públicas e com que se pode saber o que havia na caixa preta orçamentária. Até hoje, o Brasil exporta tecnologia sobre transparência orçamentária. Não tinha sido possível fazer até então porque nenhum presidente queria abdicar do poder de gastar a vontade, sem controle; mas eu tive a coragem e a visão da necessidade de modernizar e fazer. E fiz. O rombo apareceu e o FMI não teve mais necessidade de mandar vir aqui, para vergonha nossa, aquelas comissões que ocupavam salas do Palácio do Planalto, auditando as contas brasileiras, porque não se sabia onde estava o verdadeiro orçamento.

Endividar o Brasil faz parte sua existência. Quando Dom João VI voltou a Portugal, raspou os cofres públicos, e no reconhecimento da Independência assumimos suas dívidas de 3 milhões de libras (o equivalente a 12 bilhões de libras atuais) com a Inglaterra.

O problema fiscal continuou na República. O primeiro colapso, que mostrou a falência do país, foi quando Campos Sales negociou a dívida, com suas consequências duras sobre a vida das pessoas e das empresas. Rodrigues Alves promoveu a austeridade fiscal, mas logo retomamos a gastança.

Um orçamento sem déficit é um sonho antigo, embora até hoje se conteste isso e muitos defendam que é um engessamento que não permite crescimento.

Na contramão do que ocorre no governo federal e em grande parte do Brasil, desde o Governo Paulo Ramos o Maranhão é um estado que manteve suas contas públicas organizadas. Nunca mais houve atraso no pagamento do funcionalismo, para citar o menos: no tempo de Governador Luís Domingues se chegou ao auge, e ele recebeu uma carta célebre, até hoje peça clássica de ironia, pedindo que pagassem ao autor — funcionário público —, pois, com seis meses de salário atrasado, era obrigado a se sonhar fazendo coisas escabrosas com as damas mais respeitáveis da sociedade.

Já disse aqui que Roseana tinha verdadeira obsessão com a Responsabilidade Fiscal e o Estado era o 2º mais equilibrado do Brasil, pagando em dia funcionários e fornecedores.

Vejo agora que o Maranhão foi rebaixado no índice de capacidade de pagamento (sua relação entre despesa e receita, a Poupança Corrente, passou do limite de 95%) e não pode mais tomar empréstimos; já está com parte do funcionalismo atrasado, juntou-se aos outros estados do Brasil na crise da previdência (com R$ 1 bilhão de déficit previdenciário no ano passado) e teve o seu Fundo de Aposentadoria raspado, com os saques do governo para atender ao caixa geral.

Vamos voltar à tradição do Maranhão: finanças equilibradas, aposentados e funcionalismo em dia, fornecedores recebendo suas dívidas. Fora daí é o caos. A salvação é a Responsabilidade Fiscal, um avanço para um país progredir e o povo viver com inflação baixa. Só gastar o que arrecada!

José Sarney

“Malhar os políticos” é o novo esporte nacional diz Sarney em artigo

Deus me deu uma longa vida para que eu tivesse de ver passar muitas coisas – muitas delas até mesmo conflitantes. Na minha juventude, adolescência e maturidade, tínhamos um grande orgulho do Brasil. Todos amávamos a nossa terra, suas riquezas, suas belezas, seu povo. Hoje a moda é falar mal do Brasil: coitado dele, tão bom, mas vítima de surras do seu próprio povo. Muitos até mesmo têm inveja de outros países e pensam em sair daqui.

Quanto mais viajo, mais orgulho tenho do Brasil. E, como dizia o meu avô sobre o Maranhão, “Se a minha alma tiver vergonha, nem ela deixará esta terra tão extraordinária.” (?) Os seus defeitos são muito melhores do que os dos outros.

E agora que temos uma vez mais a fantástica visão da alegria do povo brasileiro com o futebol, mas vivendo as agruras da Copa – essa corrida de obstáculos em que o que mais sofremos é com os nossos jogadores -, sentimos até as distensões das pernas dos nossos craques.

Mas agora estamos assistindo a outro esporte nacional: malhar os políticos mais do que malhavam Judas no sábado da aleluia. Hoje acho que Judas está melhor do que os políticos, porque não há roda em que se falava do futebol em que hoje a bola da vez não sejam os políticos.

De tal modo que leio agora que um candidato a senador, oriundo dos meios de comunicação, diz que vai entrar na política, em que pode ser até uma porcaria de político, acrescentando que “vocês podem ter um político de péssima qualidade, mas vão ter um cara que vai ser uma coisa só: honesto com você”.

Ora, eu sempre tenho dito que há políticos e políticos, políticos bons e políticos maus. Os bons, Joaquim Nabuco, no seu livro A minha formação, diz que “devem ser escritos com P maiúsculo”. Realmente, os políticos maus desmoralizaram bastante essa atividade das mais nobres dentro da sociedade.

E com que surpresa abro a Oração Devocional do Papa Francisco, do dia 22 de julho, com esta afirmação: “Para o cristão, é uma obrigação envolver-se na política. Nós, cristãos, não podemos brincar de Pilatos, lavar as mãos. Devemos nos envolver na política, pois a política é uma das formas mais altas da caridade, porque busca o bem comum. E os leigos cristãos devem trabalhar na política.”

A alusão que ele faz é àquela resposta de Pilatos: “Estou inocente desse sangue. A responsabilidade é vossa”, quando ele responde ao povo que gritava que ele devia crucificar Cristo.

O bom político é aquele que está convicto de que sua atividade é pensar nos outros, fazer o bem, defender a igualdade e os que mais precisam. Os que agem diferente não são políticos, mas dela se utilizam, manchando-a.

Assim, concluo dizendo, como o papa Francisco, que devemos abandonar esse esporte de falar mal do Brasil e da política. Condenemos os maus políticos, mas não deixemos que eles atinjam, com suas atitudes condenáveis e nada morais, o nosso país, onde abrimos todos, brasileiros, os olhos para a vida.

Da Coluna do Sarney

Coluna do Sarney: Nem medo nem provocação

 

 

O processo democrático no Brasil não conseguiu aprofundar-se depois da redemocratização do País.

O sistema eleitoral brasileiro, com seu bolorento anacronismo, só tem contribuído para que o gargalo institucional que atravessamos, depois de sepultar as intervenções salvacionistas dos militares — iniciadas com a República —, volte a figurar em nossas preocupações. Não soubemos fazer uma reforma política que restaurasse e fortificasse os partidos e possa assegurar a execução de um programa de governo que tenha sido aprovado pelo povo através da eleição. Esta não pode ser esse espetáculo em que se transformou, no qual o êxito está no dinheiro, na capacidade de arregimentar apoios quase sempre tocados por interesses subalternos.

Enquanto a reforma não ocorre, ficamos expostos à violência dos debates, aos insultos pessoais, em que o objetivo maior é desqualificar o adversário e não valorizar as ideias.

Não estou falando do quadro estadual, minha análise é do processo eleitoral brasileiro, de cujo debate participo há 60 anos, quer apresentando projetos, quer advogando a necessidade de melhorar o sistema eleitoral. Data de 1977 o meu projeto do voto distrital. Passei a defender o modelo alemão, em que podemos fazer a metade da representação por votos proporcionais e a outra metade por lista partidária. Mas para isso teremos de criar partidos com democracia interna, que assegure uma vida partidária e a formação de lideranças, substituindo os cartórios de registro de candidatos que são, na realidade, essa multidão de siglas.

A República, que não teve povo quando começou, resolveu fazer as eleições com declaração de voto. O eleitor saía da seção já com cópia autêntica de seu voto, para apresentar a quem de direito. Não havia erro. Mas, se escapasse algum, ele era corrigido: a Comissão de Reconhecimento de Poderes era a guilhotina que garantia a fidelidade.

Quem operava isso era o gaúcho Pinheiro Machado. Era um homem de mediana cultura, péssimo orador, falava baixo e sem emoção, pausado e lento. Por que então tornou-se o centro das decisões nacionais? Não tinha as qualidades intelectuais da elite republicana, mas possuía uma que era a mais necessária para o momento: saber comandar e chefiar. Sagaz, valente, homem de lança e palavra. Ele conseguiu firmar-se na posição de operador dos instrumentos que a República montou para sobreviver. Dizia que era contra as intervenções para agradar os governadores, porque estas eram espadas em suas cabeças, mas delas se utilizava para o jogo entre facções e fidelidades.

Virgílio de Melo Franco, que foi um dos líderes do fim da República Velha em 1930 e do fim do Estado Novo em 1945, foi, muito jovem, apresentado a Pinheiro Machado, que lhe pretendeu passar lição, dizendo que precisava estudar para ser alguém. Virgílio retrucou que sabia de exemplo do contrário… Ele gostava de contar que viu Machado passar de carro, em meio a vaias, e dizer ao motorista, enquanto fazia que lia um documento:

“Ande nem tão depressa que pareça medo, nem tão devagar que pareça provocação.”

O tempo de Pinheiro Machado passou. Hoje temos a urna eletrônica, o voto é secreto. Mas as campanhas precisam ser livres, sem ameaças de cacete, como se fazia no tempo de João Lisboa. Eleitores e candidatos não podem ter medo de votar. A democracia precisa de bom senso, sem demagogia e sem provocação.

José Sarney

Coluna do Sarney: A raiz da crise

A Constituição de 1988 está completando 30 anos. Todos sabem que dela fui um crítico firme durante sua elaboração e depois.

Agora estamos atravessando a maior crise que o País já viveu no âmbito político e econômico. Eu atribuo o que está passando o Brasil à Constituição de 88 e isso eu disse com todas as letras, pagando caro quando, iniciado o segundo turno de votação do projeto, afirmei, em pronunciamento por rede de rádio e televisão, dirigindo-me aos constituintes: “O país vai ficar ingovernável” — e ficou. Foi um desastre anunciado. Vale recordar minhas palavras daquele tempo:

“Primeiro: há o receio de que alguns dos seus artigos desencorajem a produção, afastem capitais, sejam adversos à iniciativa privada e terminem por induzir ao ócio e à improdutividade.

“Segundo: que outros dispositivos possam transformar o Brasil, um país novo, que precisa de trabalho, em uma máquina emperrada e em retrocesso. E que o povo, em vez de enriquecer, venha a empobrecer; e possa regredir, em vez de progredir.

“Em suma: OS BRASILEIROS RECEIAM QUE A CONSTITUIÇÃO TORNE O PAÍS INGOVERNÁVEL. E isso não pode acontecer.

“O País sabe que nós não dispomos de recursos suficientes para atender a todas as necessidades e finalidades do Estado.

A futura Constituição, aprovados esses dispositivos, agrava o quadro ao determinar uma perda de receita próxima de 20% já em 89. No plano interno, em valores de junho deste ano, os impactos diretos e imediatos sobre o orçamento geral da União ultrapassam dois trilhões e 200 bilhões de cruzados — cerca de 12 bilhões e 600 milhões de dólares. Este número representa o dobro do que sobra à União na arrecadação do IPI e do Imposto de Renda, ou duas vezes os programas federais, estaduais e municipais de saúde. Ou 32 anos de programa de distribuição gratuita de leite. Ou, por fim, o dobro do déficit orçamentário da União este ano.

A situação da seguridade social é igualmente difícil. Muitos dos seus gastos não podem ser avaliados. Mas, a parte calculável permite estimar custos adicionais da Previdência em mais de um trilhão de cruzados por ano (5,6 bilhões de dólares). […]

Eu não estou pensando no meu Governo. Ele será o menos atingido. O que eu estou pensando é no País, no futuro, nas dificuldades dos governos futuros, que não terão condição nenhuma de conduzir esta grande Nação, como nós desejamos que ela seja conduzida.

Como Presidente, eu tenho de visualizar o que é permanente, não o que é transitório.Tenho que enxergar além do meu mandato e tenho que evitar, na trajetória, que se instalem caminhos inviáveis, inconvenientes ao interesse nacional.

“Refiro-me, particularmente, à brutal explosão de gastos públicos decorrentes de benefícios desejáveis, que todos nós desejaríamos atender, mas que infelizmente não temos como atender. Como pagar contas astronômicas sem asfixiar os contribuintes, sem inviabilizar nosso crescimento, sem suprimir empregos, sem conviver com uma superinflação? […]

“O Brasil corre também o risco de tornar-se ingovernável nas empresas, nas relações de trabalho, nas famílias e na sociedade. […]

O Estado não cria recursos. Ele apenas os administra. Mas se sufocarmos os trabalhadores e a classe média, e se impedirmos as empresas de ter lucros, quem sobrará para pagar impostos? A classe média, vítima de impostos confiscatórios dos salários, pouco poderá comprar além dos suprimentos das necessidades básicas. […]

“O Brasil precisa, mais do que nunca, de recursos para ajudar os que nada têm. Os que não têm nem emprego. Os que não têm aposentadoria.”

Quando leio estas linhas do meu pronunciamento, que é longo, acredito que fui, infelizmente, profético.

A Constituição, sob o ponto de vista econômico, paralisou o país. É hibrida, parlamentarista e presidencialista. Provocou uma desordem entre os poderes, que hoje estão se estraçalhando, destruiu os partidos e os políticos.

Implantou um populismo anárquico, um niilismo que nos levou à corrupção que invadiu todos os setores do País.

A única coisa que se salva é o capítulo sobre direitos individuais e sociais, redigido pelo grande Afonso Arinos.

Hoje vivemos o caos, do qual ninguém vê a saída.

José Sarney

Coluna do Sarney: Há 33 anos, Presidente

Sarney ao lado de Tancredo Neves

Estava fazendo as minhas orações de deitar quando minha mulher me lembrou a data que chegava ao fim: 15 de março.

Ela então acrescentou: “Você se recorda que, há 33 anos, nesta data, assumia a Presidência da República?” Eu respondi-lhe: “Não, não me lembrava.”

Lembrei-me do que tinha ocorrido no dia 24 de abril de 1985: estava eu no sepultamento de Tancredo Neves, em São João Del-Rei, no Cemitério da Igreja de São Francisco de Assis — projetada pelo Aleijadinho, com algumas obras notáveis, como São Francisco recebendo os estigmas, no frontão —, quando, depois da cerimônia, em que eu estava preso de profunda emoção, lembrei-me, já às 11 horas da noite, que, naquele dia, eu completava 55 anos de idade.

A tragédia que vivíamos com a morte do nosso líder, que até hoje lamento e me comove, me fizera esquecer até a data do meu aniversário — nem ninguém se lembrou dela.

Hoje, 33 anos depois, recordo a dificuldade que tive quando caiu em minhas mãos a transição democrática, passar o País de um regime autoritário para um regime democrático. A tarefa me enchia de temor e de angústia, sobretudo porque eu olhava para o tempo e não sabia o que seria o futuro.

Como já disse, a transição, muitas vezes, destrói ídolos e lideranças — eu não era nem uma coisa, nem outra. Mas hoje tenho um profundo orgulho de que a democracia não morreu em minhas mãos. Ao contrário, criamos uma sociedade democrática, com afirmação dos direitos do cidadão e das conquistas sociais.

Assim é que, nesses 33 anos, posso recordar que me coube, juntamente com Alfonsín, a tarefa histórica, de repercussão mundial, de retirar a América Latina da corrida nuclear, esse problema que ameaça a humanidade. E vemos o quanto é grave com o que ocorre hoje com a Coreia do Norte e a luta para que o Irã não possua armas nucleares, sobretudo agora quando o Presidente Putin anuncia que tem a arma de destruição total — o míssil inalcançável, capaz de levar muitas ogivas nucleares a qualquer parte do mundo sem ser interceptada.

Por outro lado, também com o grande amigo e estadista Alfonsín, acabamos com a grande rivalidade histórica entre Argentina e Brasil e criamos o Mercosul, que mudou a face da América Latina e, se ocorresse nosso sonho, no futuro, se transformaria no Mercado Comum da América do Sul.

Lembro também que, com meu espírito de fé, fiz colocar em nossas cédulas de dinheiro a expressão “Deus seja louvado”, que tentaram tirar, e o povo não deixou.

O maior programa de alimentação das crianças do mundo inteiro, o Programa do Leite, que distribuía 8 milhões de litros de leite por dia; o Vale-Transporte, com que o trabalhador anda hoje nos ônibus sem tirar do seu salário; o Vale-Alimentação; a impenhorabilidade da casa própria; a universalização da saúde, com que todos passaram a ter direito a assistência médica, quando antes o pobre não tinha nem onde tomar uma injeção; a Fundação Palmares, para ascensão da raça negra; o Conselho Nacional da Mulher; a lei de proteção às pessoas com deficiência; os incentivos fiscais à cultura (Lei Sarney); a menor taxa de desemprego; a Assembleia Nacional Constituinte; o crescimento econômico de cinco por cento ao ano, até hoje não repetido; o décimo terceiro salário para funcionários civis e militares: tudo isso aconteceu naqueles anos. E passamos de oitavo para sexto país na economia mundial, com o terceiro maior saldo de exportação do mundo, só perdendo para China e Alemanha.

Tempo de construção.

Os ventos da liberdade varreram o Brasil como nunca. E até hoje as eleições livres, a plena democracia, os direitos do consumidor, da mulher, do trabalhador, dos funcionários ficaram inscritos em lei, e vivemos uma das maiores sociedades democráticas do mundo.

Minha mulher teve razão ao lembrar-me aqueles dias: tenho a consciência de, neles, ter ajudado o Brasil a crescer e democratizar-se.

José Sarney

“Sou uma espécie rara”, diz Sarney em artigo

 

 

O gosto do pudim

Da Coluna do Sarney

Estamos em ano de alternância do poder. Eu tenho a noção de que a Presidência da República é um cargo muito difícil de se exercer. Henry Stimson, que foi ministro da Guerra de Franklin Roosevelt, dizia uma frase célebre: “A prova do pudim só se faz comendo” – só sabe o gosto do pudim quem o provou. Os que desejam ser presidentes não sabem o gosto da presidência. Eu já fiz essa prova e confesso que não é agradável.

Governei o país em tempos de tempestade. Sou uma espécie rara, em extinção – sobrevivente de um período de transição do autoritarismo para a democracia. E transição é a tarefa mais difícil da política. Ela tem sido o túmulo de grandes estadistas: transforma heróis em vilões, santos em demônios, mártires em inquisidores, democratas em ditadores e reduz a cinzas grandes lideranças.

Na transição tudo tem a marca do Já. Mudança já. Desenvolvimento já. Pleno emprego já. Paraíso já para agora. A panela ferve. Tira-se a tampa, sai calor, fumaça, tudo queima e está em ebulição. A violência é uma sedução permanente. A demagogia ganha foros de seriedade. Propõem-se soluções simplistas para problemas insolúveis.

O Brasil, depois desse período, ultrapassou o gargalo institucional. Não foi um passo de circunstância, foi uma opção definitiva de sua História. Há uma consciência civilista consolidada: há uma opção liberal pela economia de mercado, acabou-se a gangorra militarismo versus populismo. O jogo democrático passou a ser o único jogo. Não há opção conspirativa, não há lugar para grupos de ação extremista. O país viveu o choque da democracia e saiu em paz e ileso. É claro que pagamos e continuamos a pagar altos custos políticos, econômicos e sociais.

Mas temos muitas interrogações: qual o espaço que vamos ocupar? Quando superaremos as crises? Qual nosso lugar no panorama mundial? Como apressar a solução dos trágicos problemas sociais e econômicos? Estas perguntas nos levam a outras.

Por exemplo: a posição dos Estados Unidos neste processo. No meu tempo, provei o sabor dos conservadores republicanos – que dizem ser melhores para nós, contradizendo minha experiência. Ronald Reagan e o primeiro Bush nunca facilitaram nossas relações ou nos apoiaram na cena internacional. Trump, no entanto, reconheço, faz com que o mundo daquele tempo pareça menos amargo. A carga de dificuldades pesa mais para quem está começando uma recuperação.

A ninguém interessa essa situação. É preciso criar novos espaços e superar a agenda de sanções e protecionismos que caracterizou a década de 80 e marca novamente as relações com o governo norte-americano. Cabe a nós construir, criar, imaginar uma agenda positiva, aberta a todas as formas de cooperação.

Eu sou político e poeta. Não deixo de acreditar no impossível, nem de sonhar com otimismo.

José Sarney

Coluna do Sarney: O ano vai começar…

O Brasil tem calendários diferentes dos resto do mundo, a começar pelas estações do ano.

Aqui só temos inverno e verão, inverno quando chove, verão, quando as chuvas não aparecem, e se surgem são atribuídas às frutas: do caju, da manga e assim por diante.

Estas são sempre seguidas de muito trovão e raio e passam rápido.

Depois, as nossas divisões do ano são marcadas pelas festas, santas ou pagãs. O Carnaval marca os dois primeiros meses. Depois vem a Quaresma, que dura quarenta dias, até o Domingo de Ramos. A Semana Santa culmina com a celebração da Eucaristia na Quinta-Feira, do Sacrifício na Sexta-Feira, a Aleluia e a Páscoa; a Paixão de Cristo sempre encenada e movimentando a população, como as procissões do Bom Jesus da Cana Verde, do Encontro e, para misturar tudo, a malhação do Judas — um Carnaval fora de época, com os bailes das aleluias, uma “páscoa” regada às toneladas de chocolate, referência especial de Gramado, e que os baianos não deixam passar em branco. Depois vem o São João com as quadrilhas, os forrós e as danças de São Gonçalo das Moças.

Se tem Copa do Mundo aí é que a coisa pega fogo, porque o país para de vez e é Carnaval todo dia, com ruas enfeitadas, bandeirinhas e bandeirolas, cerveja em toda porta de casa com amigos e aderentes, todos na torcida e improvisando botequins nas calçadas e em todos os andares dos edifícios.

Vem o 7 de setembro e o patriotismo por uns dias toma conta, sobretudo da meninada, e vai ao máximo se tem Esquadrilha da Fumaça.

Em anos de eleição este mês é o auge de trabalho de moças e moços, que, de bandeiras nas mãos, espalhados por todos os congestionamentos de trânsito, gritam o nome de candidatos de que nunca ouviram falar, nem sabem de quem se trata, tudo por cinquenta reais por tarde!

Chega outubro com as grandes concentrações religiosas do Círio de Nazaré, de Aparecida, do Juazeiro do Padre Cicero. Quando começa novembro começamos a ouvir longe os primeiros sinais dos sinos do Natal.

Afinal, depois de falarmos do ano inteiro, o essencial é dizer que o ano realmente começa depois do Carnaval. Essa é a festa das festas, aquela de que até hoje se discute quando começou. Os mais fanáticos dizem que vem das famosas bacanais romanas, importadas da Grécia, em que se homenageava o deus Baco, regadas a vinhos e orgias, e que de tal modo se excederam que o Senado Romano as suspendeu no ano 186 antes de Cristo. Outros o ligam às Saturnálias, também livres e pândegas, festas do deus Saturno, que também eram célebres na antiguidade.

Não vamos dizer que o nosso Carnaval seja tanto …assim… como aquelas festas do passado, porque a nossa só faz com que as mulheres de todas as idades mostrem seu corpo e as novas, queimadas de sol, aproveitem para também mostrar os seios, guardando o essencial, tudo para se preparar para as abstinências da Quaresma…

Outros povos comemoram também outros calendários, como o chinês, o judaico, o ortodoxo Juliano e um do meu avô, que dizia que ano novo era o do seu aniversário, nada do começado em janeiro.

É assim que o ano passa, e vai começar agora, neste ano que tem Carnaval, São João, Copa e eleição. Haja paciência para tanta monotonia!

José Sarney

Coluna do Sarney: Dia de Reis – vivam os Pastores !

A obrigação dos cronistas de jornal é ficarem prisioneiros dos assuntos do dia a dia, senão vira jornal de ontem, isto é, superado e sem novidade.

Assim fiquei, ao sentar em frente ao computador, vacilando se abordava a especulação que fizeram de que eu vetara o Pedro Fernandes — logo o Pedro, de quem sempre só recebi provas de atenção, além de ser irmão do meu grande amigo Manoel Ribeiro — ou se ia falar dos Santos Reis Magos, cuja data hoje se comemora, num simbolismo em que se deseja afirmar que até os Reis, quando nasceu o Menino Jesus, foram adorá-Lo.

Esses Reis são personagens misteriosos desde os Evangelhos. Basta dizer que, dos quatro evangelistas — Lucas, Marcos, João e Mateus —, apenas este dá conhecimento deles.

Eram do Oriente, eram persas e foram guiados por uma estrela; logo, eram astrólogos. Existe a dúvida se eram três ou mais, pois Mateus não diz quantos eram. E quando chegaram a Belém? É outra incerteza, pois, primeiro, estiveram com Herodes, para onde os encaminhara a estrela. Foram a Belém, porque os Profetas e os Salmos, no Velho Testamento, diziam que o Messias nasceria ali e seria adorado por Reis.

Herodes manda que O procurem em outro lugar, e não em Jerusalém, e depois voltem para dizer-lhe onde Ele estava. Logo, não foi no dia seguinte ao Natal. Mas, na Manjedoura, os pintores O colocaram ali, onde permanece até hoje, pela tradição.

Herodes, então, enganado pelos Reis Magos, que não voltaram, indo por outros caminhos, mandou matar todas as crianças, de dois meses a dois anos de idade, o que dá uma ideia de que foi durante o período do Natal que os Reis Magos visitaram o recém-nascido.

Daí a fuga para o Egito.

Outra pergunta que se faz é sobre a palavra “magos”: se vem de magia, pois os astrólogos seriam mágicos, ou se vem de palavra grega que significa sábio. Assim, em vez de mágicos, seriam Reis Sábios.

Mais dúvida: seus nomes eram Baltazar, Merchior e Gaspar, mas esses nomes lhes são atribuídos em evangelhos que não os sinópticos, e sim na vasta literatura de evangelhos apócrifos encontrados depois da Ressurreição.

Há ainda outra questão: a de que não seriam reis, e sim sacerdotes ou membros de alguma seita. Afinal, tudo é dúvida.

Mas a verdade é a que está hoje na história: foram reis, eram magos, chegaram até a Manjedoura levando incenso, ouro e mirra.

Dúvida maior tenho eu quando pergunto a todos “Qual é o dia da queimação das palhinhas?”, e ninguém sabe ao certo. Se estão no Presépio, será Dia de Reis?

Mas era em Dia de Reis que, nos meus tempos de infância, se pediam presentes, em papel de seda, rendado, que ainda estão nos meus olhos, bordados à tesoura, com belas flores e galhos de palmas. Junto vinham uns versinhos que diziam: “Dar Reis não é vergonha / Vergonha é não pagar / Um coração como o seu / A mim não pode negar!”. E eram papéis perfumados!

Assim chegamos ao fim desta crônica, fugindo a temas de vetos inexistentes e louvando a memória de Zezé Caveira, que, em Dia de Reis, 6 de janeiro, no Largo de Santiago, onde eu morava, saía com suas Pastoras, no canto das pastorinhas: “Lindas pastoras…”

José Sarney

Coluna do Sarney: Meu amigo, o livro

Há pouco menos de 3 mil anos um cego escreveu dois livros: a Ilíada e a Odisséia. Nos séculos XVII e XVIII surgiu a ideia de que isso não podia ser verdade, que os poemas homéricos eram reuniões de cantos populares muito mais recentes, que Homero não era uma pessoa. Nessa mesma sequência se afirmou que os Evangelhos eram todos apócrifos, obras do segundo e terceiro séculos. Depois veio a correção dos métodos científicos, que demonstraram que a escrita era corrente na Ásia Menor desde os tempos da Guerra de Tróia, e que a unidade dos dois livros fundadores da literatura ocidental era tal que se chegou ao extremo de imaginá-los como obras inteiriças de 12 mil ou 15 mil versos, em vez de coleções de cantos de 300 ou 400 versos.

No caso dos Evangelhos, a descoberta dos documentos do Mar Morto tem recuado sua datação para o primeiro século, nos revelando que o autor do Apocalipse era mesmo o “discípulo amado”. As palavras tinham sido gravadas, não havia somente uma tradição oral, por mais forte que fosse esta.

Quando as expedições de Schliemann descobriram Tróia, não havia uma cidade, mas uma sucessão de cidades. A cidade perecera, não era imortal. Mas a descrição que Homero fizera de sua localização permitiu sua redescoberta. Homero e os livros são imortais.

A leitura e a escrita caminharam. A cópia era uma arte, os livros, as bibliotecas, preciosidades. Até a revolução de Gutemberg. Com a imprensa, começaria a difusão do conhecimento e, pouco a pouco, o ler e o escrever foram se encontrando.

Esse longo passo da difusão da cultura oral para a difusão da cultura escrita levou 25, 30 séculos. De repente, com a televisão e o computador, estamos criando gerações que, no espaço de uma vida, passam da cultural oral diretamente para uma nova forma de cultura, a visual.

Como nos tempos pré-históricos as pinturas representavam a caça, a vida e a morte, cenário de um ritual, a televisão nos mostra imagens abstratas de bombardeios. A morte, a violência são apreendidas como mitos distantes, catarse do quotidiano. É impossível compreender.

A televisão também a toda hora nos mostra a criança que mal sabe falar mas sabe “clicar o mouse” para “navegar na internet”. Dominado pelo efêmero, pelo instantâneo, o computador – e sou um viciado usuário – não fixa conhecimento como a escrita. Não é nova a verificação de que as informações registradas pelos computadores, ante a sucessão de programas e linguagens informáticas, tornam-se ilegíveis em poucos anos, inclusive pelo desaparecimento de equipamentos que tenham a capacidade de ler os “arquivos” armazenados.

Mas o próprio Bill Gates chamou a atenção para que é preciso saber ler e escrever para criar o computador. O caminho para a civilização passa pelo livro. O livro abre a porta do conhecimento, da ciência, da arte. O livro transforma o efêmero em permanente, o humano em imortal.

É preciso garantir o acesso de todos ao livro, viabilizar as bibliotecas e a indústria do livro. Com esta religião apresentei ao Congresso, quando no exercício do mandato de senador, tendo a cultura como a minha causa parlamentar, um projeto que criou uma política nacional do livro, colocando-o no seu altar devido.

Ele deve ser salvo, para que não se torne uma façanha mitológica.

José Sarney