Em tempos de Coronavírus, Sarney diz que é hora de união

Em tempos de Coronavírus, Sarney diz que é hora de união

Ler demais nos leva a encontrar em turnos otimismo ou pessimismo. Nesta crise do Coronavírus que enfrentamos agora, penso no que li sobre o futuro da Humanidade. Escrevi semana passada sobre isso. No livro So Human An Animal(Um Animal Tão Humano), René Dubos — microbiologista e humanista franco-americano que desenvolveu os primeiros antibióticos naturais e ganhou o famoso Prêmio Pulitzer de 1969 — faz uma reflexão sobre a nossa condição animal e, dentro da teoria da evolução, uma advertência de que sem dúvida haverá uma resposta biológica para o nosso destino como espécie.

Estamos agredindo a ecologia e destruindo uma sociedade justa e humana. Assim “de uma forma previsível e em um momento desconhecido, a natureza vai nos atingir de volta”. Isto nos dá um calafrio. De tempos em tempos a natureza nos tem dado sustos.

Os infectologistas dizem que a nossa mexida na ecologia e a civilização urbana nos conduzem a riscos de saúde ameaçadores.

O Coronavírus SARS-CoV-2 (síndrome respiratória aguda grave 2) tem um tempo diferente. Enquanto no passado os vírus levavam anos para chegar ao mundo todo, viajando em caravelas e com poucos contatos, hoje eles viajam a jato, e a circulação de milhões de pessoas, num mundo tornado pequeno pela globalização dos transportes, faz com que rapidamente sejam disseminados.

Estamos parando a vida social que construímos, e a maior parte da população mundial urbanizada, cercada pelo medo, altera a própria convivência, sem ver amigos e parentes.

Que importam as bombas nucleares, a guerra química, o crime organizado, as drogas, a disputa pela hegemonia de poder, em qualquer nível, se estamos ameaçados de desaparecer?

São reflexões que nos levam a despertar o sentimento de solidariedade, de caridade, de grandeza, e exigem dos governantes pensar mais alto.

Partidos, líderes, magnatas, sábios, celebridades e dignitários de todos os poderes comungam dos mesmos temores e sofrem as mesmas angústias.

É hora de pensar que somos irmãos, que tivemos a sorte de receber a graça da vida e não podemos destruí-la em inútil luta por poder ou dinheiro, entre raças ou religiões.

As nações devem seguir outro rumo. Em vez da lei do mais forte, de mais armas, de mais violência, devemos tornar a Humanidade mais justa, os pobres menos pobres e seguir os ensinamentos cristãos de amar ao próximo e perdoar.

Nesta hora difícil de uma pandemia que não sabemos quando e como vai acabar, estejamos todos solidários, pondo de lado qualquer divergência para superar, com a graça de Deus, essa desgraça.

Da Coluna do Sarney

Sarney: ‘Calcule o que se sente ao ouvir dizer que vivemos 50 anos de atraso!’

Sarney: ‘Calcule o que se sente ao ouvir dizer que vivemos 50 anos de atraso!’

Da Coluna do Sarney

No meu último artigo sobre o meu governo do Maranhão, 1966-1970, terminei contando como constituímos um grupo de trabalho para planejar o que íamos fazer. Era o GTAP.

Faltava água, as ruas estavam destruídas e a energia eram quatro geradores a lenha da Ullen. Atacamos essas emergências. Asfaltei todas as ruas de São Luís, criei a Caema e fiz um novo sistema de abastecimento de água. Construímos a barragem do Batatã; no Sacavem, a adutora e a ampliação da Estação de Tratamento de Água; reformamos todos os sistema de distribuição d’água, construindo quatro caixas-d’água — Calhau, Oiteiro da Cruz, Tirirical e Galpão (atual início da Kennedy, onde existia um galpão com mercado de legumes e frutas) —; substituímos o encanamento da cidade. Trouxemos dois containers com geradores novos, evitando a continuidade do racionamento que existia até a chegada da energia da hidroelétrica que estávamos construindo no Rio Parnaíba — Boa Esperança.

Comecei a construção de grandes conjuntos de casas populares, criando a COHAB. Para estabelecer comunicação com o interior e melhorar a da capital, criamos a Telemar, cujo presidente era o General Alexandre Colares Moreira, e iniciamos o primeiro plano de Comunicação do Brasil, preparado pelo Coronel Goes, o mesmo que fez o Plano Nacional, grande autoridade na matéria.

Abrimos e construímos a Avenida Kennedy, transferimos a a população da grande palafita que ocupava a área que hoje é a região da Areinha para o outro lado do Bacanga — onde estávamos construindo a Barragem —, e fundamos o Anjo da Guarda. A cidade mudava de aspecto, e os problemas urgentes estavam resolvidos com as novas vias. Para elaborar e implantar um plano de engenharia de tráfego, trouxemos o Major Fontenelle, que fazia o mesmo plano no Rio no governo Carlos Lacerda. Assim, buscávamos, com grande antevisão, enfrentar os problemas que viriam no futuro.

Com a Barragem do Bacanga e a Ponte José Sarney, a cidade era outra, se expandia, abria as asas. Roseana completaria essa obra trabalhando por São Luís, construindo viadutos, abrindo novas avenidas, criando os Vivas, promovendo a Cultura com o renascimento das tradições culturais. Desse modo o nosso objetivo de tornar a cabeça do Estado a sua capital, renovando-a, estava atingido. Tudo que temos hoje vem do passo inicial e, como dizem os chineses, toda corrida começa no primeiro passo.

Pense como seria hoje a São Luís sem nada disso, sem a visão do futuro, sem as obras de há 50 anos, que concebemos e iniciamos.

Depois veio a parte da Educação, com a Cema, a TV Educativa, a Universidade, os Ginásios Bandeirantes, as escolas João de Barros e a nova mentalidade que passou a existir, de progresso e futuro.

E calcule o que se sente ao ouvir dizer que vivemos 50 anos de atraso!!

‘Abrimos caminhos’, diz Sarney ao lembrar do MA quando assumiu o governo

Em 1966, ao assumir o Governo do Maranhão, constatei de que não podíamos debitar somente aos governadores, meus antecessores, a situação de bagunça em que estava a administração do Estado. Na verdade ela não existia.

Basta, como exemplo, dizer que a contabilidade era feita à mão, num daqueles velhos e grandes livros iguais aos do comércio de “deve” e “haver”. Meu primeiro ato foi ir ao Tesouro e, com um lápis vermelho, encerrar esse livro e escrever: “Aqui começa um novo Maranhão.” Já citei uma vez o grande chefe político maranhense Marcelino Machado, que marcou época quando disse que o Maranhão era um “burgo pobre”.

Em matéria da máquina de governo vivíamos com as práticas do Século 19. Resumia-se a Polícia e Coletoria. Uma para assegurar o comando político, outra para controlar o dinheiro dos impostos e completar o domínio do primeiro. No interior, a estrutura era formada pelo Delegado, pelo Subdelegado e pelo Inspetor de Quarteirão. Ao primeiro competia prender e soltar. Ao ser preso, o indivíduo tinha de pagar a carceragem, o que rendia um bom dinheiro ao Delegado. O Subdelegado dividia as funções com o Delegado. Nos povoados o Inspetor de Quarteirão prendia, soltava e tinha poder sobre todas as coisas. Era a maior autoridade.

Muitos Municípios não tinham cadeia — a prisão era o tronco a que se amarrava o preso com correntes. Todos nomeados pelo Governador e indicados pelo chefe político municipal. A metade dos Municípios não tinha Juiz; a função de julgar era exercida por três suplentes de Juiz, 1º, 2º e 3º, nomeados pelos Governador.

O Coletor cobrava o imposto, perseguindo uns e dispensando outros. O Delegado e o Coletor eram assim o Estado, e o Juiz Suplente, a Justiça.

Mas havia um gancho que dava grande poder político ao Coletor: ele arrecadava, mas não mandava o dinheiro para o Tesouro em São Luís, pois não havia banco nem outra maneira de fazer o envio. Assim o Coletor vinha todo mês trazer o dinheiro à repartição do Tesouro em São Luís e, entre duas vindas, manobrava esse dinheiro, favorecendo ou prejudicando os comerciantes com o dia de pagar ou de não pagar. Fiscalização: nenhuma!

Na minha campanha de Governador, sabendo que esse sistema era as pernas do coronelismo (quem quiser se aprofundar no tema leia o livro clássico de Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto), prometi — e cumpri — que, eleito Governador, o Delegado seria nomeado por concurso público e o Coletor, sem vinculação com politicagem.

Minha primeira aparição na televisão como Governador foi mostrando as correntes dos troncos medievais no Maranhão — acabei logo com todos eles.

Vi logo que tínhamos que organizar o Estado e fazê-lo funcionar realizando imediatamente uma grande reforma administrativa. Trouxemos técnicos da Sudene, fizemos convênios com o Instituto de Serviço Público da Bahia, expert no ramo, e com a Universidade de Miami. Fundamos a Sudema, órgão de planejamento, com gente nova, cheia de idealismo e sintonizada comigo. Gente como Tribuzzi, Fialho, Haroldo Tavares, Emiliano Macieira, Eliezer Moreira, Itapary, Buzar e tantos outros de grande talento. Começamos a grande mudança — modernização e planejamento — para fazer o Maranhão Novo. Sair da estagnação.

Novos ventos e mentalidade sopraram. Saímos do zero e abrimos caminhos para deixarmos de ser o Maranhão estagnado.

Primeiro passo: organizar para transformar. O navio sai do porto!

Da Coluna do Sarney

Sarney comenta ‘quase assassinato’ de Gilmar Mendes por Janot

O grande escritor e jornalista, que modernizou a imprensa brasileira, Odylo Costa, filho, contava uma história dos antigos tempos, do início do século XX, no tempo das intervenções salvacionistas, passada com um interventor do Piauí, violento e autoritário, como eram as autoridades daquela época e naquelas circunstâncias ditatoriais. Num Tribunal do Piauí, seu pai, o desembargador Odylo Costa, foi testemunha da invasão da Corte por um grupo de policiais, que vinha com a ordem do Governo comunicando aos desembargadores que, se concedessem um habeas corpus a um preso que o interventor tinha mandado encarcerar, ele dissolveria o tribunal.

Mesmo sob essa ameaça, a Casa resolveu conceder o habeas corpus. Foi o quanto bastou para que a polícia entrasse no recinto da Corte, caísse de tiros e dissolvesse a sessão.

Contava Odylo que, graças à prudência do seu pai, eles ainda o tiveram vivo por muitos anos, para alegria de toda a família. É que o velho Odylo, sentindo o clima, foi um dos primeiros a retirar-se. Muito mal dera-se um colega seu, retardatário, que saiu correndo, teve sua toga presa na maçaneta de uma porta e, sem olhar para trás, gritava: “Me larga, soldado, que eu votei contra o habeas corpus.” Outro colega, menos prudente, pegou um tiro nas partes pudendas.

Odylo, numa crônica deliciosa para o “Diário de Notícias”, do Rio de Janeiro, contou esse episódio, que já deve ter uns cem anos.

Recordei-me desse fato pensando que isso era um fóssil jurídico da história da magistratura no Brasil. Não é que agora, para perplexidade nacional, um ex-procurador-geral da República diz que foi a uma sessão do STF preparado, com premeditação e bala na agulha, para matar um ministro do Supremo Tribunal Federal. Fato que, graças a Deus, não aconteceu, para a sorte do país, mantendo presente e defendendo os direitos individuais o ministro Gilmar Mendes; e o dr. Janot, tomando tranquilamente seu aperitivo, quando podia, por um gesto de ira, ter ido fazer companhia ao colega Fernandinho Beira-Mar no complexo da Papuda.

E nós nos lembramos do provérbio do rei Salomão, que diz: “Nada existe de novo debaixo do sol.”

Mas, certamente, o velho Odylo nunca teve medo da bala dos seus colegas, nem dos representantes da sociedade, função do Ministério Público.

Agora eu acho que, por prudência, como tinha aquele velho magistrado piauiense, não só os juízes, mas também os advogados, devem apegar-se com os santos e com o cumprimento do Estatuto das Armas, exigindo que a Polícia não admita porte de armas nos tribunais e em nenhuma das serventias judiciais, porque senão, em vez de surgir a Justiça que todos vão buscar, pode-se encontrar a bala, que, em vez da vida, traz a morte.

E a deusa da Justiça, que está à frente dos tribunais com os olhos vedados, deve tirar a venda, porque senão ela pode ser atingida por uma bala perdida.

Da Coluna do Sarney

Em artigo, Sarney comenta fim das coligações partidárias

Na minha longa vida política testemunhei muitas mudanças. Mudanças de todo tipo: comecei com a votação em cédulas impressas com o nome do candidato e distribuídas entre os eleitores, que as levavam à mesa eleitoral, onde recebiam um envelope para colocar o voto. Era uma guerra entre cabos eleitorais para formar chapas, substituí-las por outras, o que motivava brigas e pancadarias entre candidatos e entre seus seguidores.

João Francisco Lisboa recuou um pouco mais e escreveu largamente sobre eleições na Antiguidade, desde o “palmômetro” até o “brigômetro“, as eleições a cacete.

Vi mudanças de legislação eleitoral às carradas, costumes parlamentares, maneira de escolha de candidatos; vi baixar o nível das candidaturas e corromper a vontade popular, usando como linha de frente o poder e o dinheiro.

Mas nada como agora, quando surgiu para mim uma novidade extraordinária: os partidos não escolhem os candidatos que têm votos, sob a argumentação de que tiram as possibilidades de eleição dos novatos. Tivemos até, na última eleição, um partido que não aceitava candidatos de eleição certa.

Isso sem dúvida é uma coisa que jamais pensei surgir na disputa eleitoral: os candidatos, para conseguirem entrar na chapa, não podem ser aqueles que tiveram sempre a preferência do povo e se elegeram, mas os que não têm votos e, somando os poucos votos dos novos, criam a possibilidade de o partido ter um ou dois eleitos, geralmente os detentores das direções partidárias.

Assim, a primeira qualidade para ser candidato é não ter votos nem possibilidade de se eleger. Fiquei sem saber qual era a lógica dessa conduta. Assim, a política não é mais a escolha por ideias, por trabalho, por tradição ou pela capacidade de liderar e por já ter sido testado pelas urnas. A experiência não é levada em consideração, nem o trabalho partidário, mas o que conta é não ter voto nem capacidade de angariá-lo. Hoje ganhou status de circulação geral a chamada barriga de aluguel, em que afinal uma barriga, o partido, serve para fazer crescer um filho que não é seu.

Soube, contudo, que a experiência de chapas dos sem-votos, na última eleição, também tornou os partidos que assim procederam em partidos sem representantes: não elegeram ninguém.

Os partidos transformaram-se em cartórios de registro de candidato e estão quase todos morrendo, como morrendo está a democracia representativa.

Como a próxima eleição é municipal, essa técnica está sendo costurada para ela, e ninguém está querendo coligação com partido que tenha vereador eleito. Na eleição passada, as chapas de deputado feitas assim resultaram num grande fracasso.

Essa regra de eleição sem voto nunca pensei que pudesse existir. Pois no Maranhão existe. Só se João Lisboa nascer de novo e escrever, em vez de “eleição na antiguidade”, “eleição na atualidade”…

Da Coluna do Sarney

“Nunca deixei de praticar o diálogo e de respeitar os meus adversários”, afirma Sarney em coluna

Eu tenho afirmado ao longo da minha vida que nasci com uma total incapacidade de ter ódio e que rejeito a execrável teoria do Lenine de que devemos inverter na política o enunciado de Clausewitz de que “a guerra é a continuação da política por outros meios”.

Segundo essa tese, o adversário teria que ser tratado como inimigo, a quem não se deve apenas vencer, mas destruir, matar, aniquilar. Não se estaria mais na disputa das ideias e sim em um campo de batalha.

Para isso Lenine defendia o método da Revolução Francesa, da guilhotina na Praça da Concórdia, em Paris, e dizia ser o Terror necessário na disputa política. Ele o usou na Revolução Russa, e o resultado foram os milhões de mortos do comunismo.

Sempre fui coerente ao considerar a democracia o campo do debate, da disputa pessoal e política. Nunca deixei de praticar o diálogo, de respeitar os meus adversários — e quantos tive e tenho! — e nunca persegui ninguém, nem erigi estátuas à Deusa da Vingança, Adrasteia.

Outra coisa que nunca me corroeu a alma foi o ressentimento. Quantas e quantas vezes tenho repetido isso. O ressentimento e a inveja só fazem mal a quem os pratica. Corrói e angustia.

Por outro lado, não tenho motivo para tê-los. Deus me deu um destino de graças. Levou-me da Pinheiro, onde nasci, e de São Bento, onde passei a infância, por um caminho de estrelas, que colocou em minhas mãos. Fez-me Vice-Presidente e Presidente da República, Governador do meu Estado, três vezes Deputado Federal, cinco vezes Senador da República, o que mais tempo passou na Casa, 39 anos, seguido por Antônio Azeredo, 34, e Rui Barbosa, 32.

Sou Doutor Honoris Causa pelas universidades de Coimbra, Pequim, Moscou e Federal do Maranhão, minha terra amada. Membro da Academia Brasileira de Letras (atualmente seu decano) e da Academia de Ciências de Lisboa, onde foi Secretário Perpétuo José Bonifácio.

Escrevi 121 livros, alguns traduzidos em 12 línguas, em 169 edições. Fui publicado na mais importante coleção de literatura do mundo, a Folio, com 4.800 títulos, editada pela Gallimard.

Entre 40 condecorações, tenho a maior do Brasil, a Medalha do Mérito Nacional, e a mais conhecida no mundo, criada por Napoleão, a Legião de Honra da França, no mais alto grau, Grã-Cruz.

Graças a esse meu jeito de ser, qualidades que Deus me deu, conquistei essa vida. Posso dizer, como Lincoln, que nunca cravei por meu desejo espinho algum no peito de ninguém. Napoleão dizia que “a política é destino, a literatura, vocação”. Dividi-me entre as duas.

Jamais posso me desinteressar da situação nacional e maranhense. Estou escrevendo um livro sobre nossa conjuntura, “O Brasil no seu Labirinto”.

O Maranhão e seu povo estão em primeiro lugar, e é bom que tenhamos uma política respeitosa, civilizada e democrática.

José Sarney

Coluna do Sarney: Junho, festas e fogos

São Luís é uma terra que bem merece ser chamada de Ilha do Amor. Melhor seria se fosse do Amor Demais. Falo do amor a sua história e a sua gente, a seu espírito, a sua beleza. Para parodiar Hemingway, que dizia que “Paris é uma Festa”, eu diria que São Luís é um amor. É para mim uma terra de lembranças que estão associadas a minha mocidade/juventude, já que são uma mesma coisa. Mocidade, o tempo da vida, juventude, a vida do tempo em que descobrimos a alma, o espírito, os pensamentos, as pessoas que definitivamente vão se incorporar ao nosso universo sentimental.

Mas a São Luís que está na minha alma, na saudade e na lembrança já não existe mais. Mataram-na os anos em que o progresso criou outras cidades dentro da minha cidade. Eu mesmo ajudei-a a desaparecer, quando construí a Ponte José Sarney, que criou uma outra cidade, moderna, sem os paralelepípedos e as pedras de cantaria, sem os sobradões e os azulejos, sem os mirantes e as moradas inteiras, meia-moradas e porta-e-janelas, e sem os bondes, onde jogávamos os primeiros olhares para as moças do nosso tempo, lindas nos seus uniformes de saia azul e blusa branca.

Mas a cidade não era a Ilha do Amor, era a Ilha Rebelde, rebelde pelas heranças do passado que a fez resistir a todas as ocupações, dos franceses, dos holandeses e dos portugueses, e a todos os governos, para ser uma cidade sem amarras, bem brasileira, na miscigenação das raças, em que negras magras e elegantes tiveram forte influência.

Falo da cidade para falar da alegria do nosso povo, dos folguedos populares, do nosso Carnaval — que até hoje resistiu às invasoras tendências de modernidade para se manter autêntico e puro. Depois o São João, que copiaram da gente e em que jamais serão o que nós somos.

E falar de São João é falar de Junho, mês em que chegam os ventos gerais, em que os dias vão se transformando de chuvosos para de sol aberto, e as noites são os sotaques dos bois, do Bumba-Meu-Boi, em que se misturam os caboclos de paus de fita, os índios de cabeças de pena, as “catirinas”, os “pais-franciscos”, e, por fim, os “bois”, de couro, de miçangas e com figuras religiosas bordadas por mãos de fada, como aquela “Neusa”, cantada nas toadas de matraca e de pandeiros gigantes: “foi Neusa quem bordou”. E os cantadores, heróis do nosso povo, que deixaram até provérbios como este: “como o Boi de Tolentino, só fama”, quando a decadência chegava, ou com a velhice ou com a perda do prestígio e beleza.

E ainda o Tambor de Crioula, das saias rodadas e das “pungas sensuais”. Tudo isso misturado com os fogos, os busca-pés, as danças e o trejeito das mulatas.

Entre fogos e festas brincamos todos. Tribuzzi, Bogéa, Evandro, Luís Carlos, Sílvio, Cadmo, Floriano, Figueiredo e eu passávamos a noite acompanhando, com matracas na mão, o Boi da Maioba.

Junho, Maranhão, festas e fogos.

 

José Sarney

“Necessária”, diz Sarney sobre Reforma da Previdência

“Necessária”, diz Sarney sobre Reforma da Previdência

Depois que me afastei da vida partidária e do Congresso Nacional (em 2014), gradativamente as informações sobre os bastidores da política foram escasseando, e previsões e análises corretas sobre partidos e pessoas, sem vivência e convivência diária, é impossível. Por isso tenho recusado dar entrevistas e afastei-me do noticiário político. Mas isso não afasta o meu sentimento de preocupação, o meu estado de atenção e, mais do que tudo, o meu amor pelo nosso País.

Fui o primeiro a dizer, ainda no período de meu mandato presidencial, com tantos desafios, que o Brasil era maior do que todos os problemas. Vencerá todos e, cada vez mais, será uma grande Nação, como antevia José Bonifácio, o Patriarca, o Fundador, nos primórdios da Independência — que está perto de completar 200 anos: 2022.

Assim, meio fugindo a polêmicas, que não devo mais cultivar, nem, como dizem os amantes do futebol, entrar em bola dividida, quando me perguntam como vejo a situação nacional, digo, como exemplo, que me imagino na Londres do século XIX, num dia de inverno, em pleno fog, a garoa profunda impedindo que se veja um palmo diante dos olhos: não se vê nada, tudo está encoberto, e nem os batentes das calçadas aparecem.

Mas o contorno da grande cidade não some, e o fog não atinge a alma, nem cobre a consciência. E vivemos um paradoxo: o que é invisível se vê, e o que é visível desaparece.

Sempre no Brasil se falou em reforma. Agora é a vez da Previdência, e todas as fichas estão jogadas nela.

Lembro-me que a primeira grande batalha com a palavra reforma foi com Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Nabuco, conselheiro do Império e Senador, quando, no Club da Reforma, lançou o slogan, para nós, brasileiros, novo, de “Reforma ou Revolução“. Teríamos de fazer a reforma da Monarquia, se não viria a revolução.

Hoje, graças a Deus, não se fala mais no dilema da “revolução”.

E a reforma sempre esteve na pauta da política. Às vezes com temas isolados, a agrária, a do Judiciário, a do Legislativo, a da Administração, e tantas outras.

Para recordar que algumas vêm de longe, também no Império o Conselheiro Saraiva passou a vida dedicado à Reforma Eleitoral, que foi feita, mas sempre se precisa fazer uma nova. Sem falar na reforma política, a mais necessária de todas.

Jango tanto falou em reformas que inventou um conjunto delas, as Reformas de Base, e caiu afogado nelas.

Eu também passei a vida falando em reformas e defendendo reformas: eleitoral, política, administrativa e do regime, até que terminei reformado pela idade.

Quando cheguei ao Senado, estava no tempo de ebulição de reformas. Eu era um dos reformistas. Milton Campos pôs a mão no meu ombro e disse, com seu ar sábio e profético: “Sarney, quando as reformas forem feitas, não precisaremos mais de reformas.”

Mas não podemos esquecer que a Reforma da Previdência é uma reforma necessária mesmo. Nada de nova Previdência. É a reforma possível, como disse Bolsonaro. E nada de “ou ela ou o caos”.

Da Coluna do Sarney

Sarney cita “indignação” após tragédia de Brumadinho

Sarney cita “indignação” após tragédia de Brumadinho

Não há olhos no Brasil que não tenham tido lágrimas ou vontade de tê-las com a tragédia da barragem de Brumadinho: os mortos sufocados por uma brutal e avassaladora corrente de lama e pó de ferro; a irresponsabilidade daqueles que não foram capazes de pensar que um dia isso poderia acontecer; a burrice e a estupidez das instalações administrativas e refeitórios a jusante da barragem… Para lembrar Fernando Pessoa, “quantas mães choraram, / Quantos lhos em vão rezaram!” Quantas noivas perderam a esperança e o sonho de um bem-amado, quantas viúvas, qual Penélope, esperam em vão o retorno dos seus maridos?

Uma cidade condenada à morte e guardando para sempre a memória desses mortos. Os anos que passarem serão incapazes de sepultá-los ou esquecê-los. E a pergunta aterradora, que nos revolta qualquer que seja sua resposta – de quem é a culpa? E a dor de ver a procura dos corpos, procurados na esperança de poder dar-lhes uma sepultura cristã? E a dor dos olhos dos seus amantes e amados, na saudade de ver de novo?

Mariana ainda sangra, e Brumadinho sangra mais ainda. Uma, sangue da natureza e de gente; outra, hemorragia de gente, sofrimento, dor e morte dos rios Doce e, agora, Paraopeba; águas que não saciarão mais a sede de ninguém e se tornaram assassinas dos peixes e dos sapos. Ali não poderão mais beber as capivaras, os veados, as vacas e os bois. Tudo é lama, água e barro, pau e ferro.

Repetimos a pergunta amarga: de quem é a culpa?

Dos que pensaram que ali podiam barrar águas de rejeitos sem temor de que um dia poderiam destruir tudo; dos que, pela ganância, julgaram que era mais importante ganhar dinheiro, buscando o mais fácil em vez do mais seguro. Dos que autorizaram esse caminho. Dos que autorizaram essa torpeza. Dos que pensaram mais em ganhar mais, do que na vida e na morte dos que ali iam trabalhar, e escolheram aquelas montanhas e belíssimas paisagens ouvindo o silêncio das florestas e das águas para buscar repouso em pousadas, sítios, lugar de descanso e meditação.

Brumadinho é uma tragédia e, mais do que uma tragédia, uma dor que dói hoje, vai doer amanhã e vai doer para sempre. Que ela seja um símbolo a ser seguido, e não esquecido, como Mariana, e que todas as barragens feitas e alicerçadas nessas mazelas sejam transformadas em obras seguras de engenharia, embaixo das quais todos possam dormir sem medo de ser tragados por elas.

Não me apresentem desculpas: não há desculpas. Não busquem argumentos: eles não existem. Grita mais alto a realidade dos fatos: que se enterre com os mortos de Brumadinho a falsa engenharia, a ganância, e que aflore daí, como exemplo, a punição de todos os culpados, pois ninguém resgatará mais a vida dos que morreram. A revolta do Brasil é justa, a indignação do Brasil, muito mais. Junto-me à dor de todas as famílias dos que morreram.

José Sarney

Sarney comenta fake news em artigo

Sarney comenta fake news em artigo

Falei, na última semana, da questão da verdade. Continuo minhas reflexões. Citei o grande Unamuno – e lembro o mais espanhol dos pintores, Goya.

Goya foi o retratista insuperável da corte espanhola, mas sua obra tem uma vertente de crítica social que cresce a partir da Revolução Francesa. As guerras pela independência e contra o absolutismo no começo do século XIX foram brutais. Ele as comenta em “Los desastres de la guerra”. No fecho da série, depois das violências dilacerantes que mostra, uma gravura se intitula “Murió la verdad”: o corpo de uma jovem de seios nus ilumina a cena, sendo enterrada por guras grotescas, a Justiça caída ao lado, suas balanças no chão. A jovem é La Pepa, apelido da primeira Constituição espanhola, feita em Cádis, que vigeu de 1812 a 1814 e de 1820 a 1823 – e no começo de 1822 foi, por um dia, a primeira Constituição do Brasil. Em 2012, na comemoração dos 200 anos de La Pepa – que marcou profundamente o século XIX e foi mais influente na América que a Constituição francesa -, fui convidado para fazer a conferência de abertura do grande evento. Foi uma manhã memorável porque a solenidade se realizou no Oratório de São Felipe Néri, a capela barroca onde foi escrita a Constituição, tendo ao fundo, ornamentando o altar-mor, lindo quadro da Imaculada Conceição, considerado uma das melhores obras de Murillo.

Para Goya a verdade era o símbolo dos grandes princípios políticos da Revolução Americana, cristalizados por Jefferson como direito à vida, liberdade e busca da felicidade, e da Revolução Francesa, liberdade, igualdade, fraternidade.

Dois professores de Harvard, Levitsky e Ziblatt, estudaram Como as Democracias Morrem. Identificaram alguns padrões: a rejeição pelos políticos das regras democráticas do jogo, a negação da legitimidade aos oponentes políticos, o encorajamento à violência e as restrições às liberdades, inclusive de imprensa. Cada um deles, por si, atestaria que a democracia está em risco. No cenário norte-americano, no último século, só Nixon se enquadrara num deles – e, agora, Trump se encaixa nos quatro. E um dos seus principais instrumentos seriam as fake news.

Dizia eu, falando sobre a comunicação no mundo digital, que nele “as fronteiras entre o original e suas cópias parecem ter desaparecido. Ao não distinguirmos mais os originais das cópias, todo o problema da alteridade parece se complicar. O que era antes verdadeiro, vaga hoje na incerteza. As informações ganham valor de verdade simplesmente por estarem na internet.”

É a antiga brincadeira do telefone sem o, em que uma frase é repetida ao longo de uma roda e, ao chegar ao primeiro autor, já é outra. Na internet, uma informação alcança milhões de pessoas num instante, sem exame crítico, aceita por vir da pessoa ao lado, diante da qual desarmamos os filtros do senso crítico. A verdade é atestada pela proximidade.

A interferência russa na eleição americana, que é fake news, segundo Trump, mas não é fake news, é verdade, foi feita não com uma grande mentira, mas com milhares de pequenos incentivos nas redes sociais aos preconceitos de grupos: aos carvoeiros desempregados, aos criacionistas desconfiados da ciência, aos brancos que têm medo de pretos, aos pretos com medo dos imigrantes… As fake news são pedrinhas lançadas morro abaixo que levam de roldão pedras, matos, florestas inteiras.

Mas nós devemos também meditar sobre que dizia o padre António Vieira: que o Maranhão era a terra da mentira – e como tem mentira!

Da Coluna do Sarney