‘No Brasil, não leram e não gostaram dos meus livros’, diz Sarney

Folha de São Paulo

José Sarney, 85, ex-presidente do Brasil, ex-governador do Maranhão e senador cinco vezes por dois Estados (a terra natal e o Amapá), não quer que a literatura seja uma letra morta em sua trajetória.

Atualmente, trabalha em duas obras: suas memórias e seu quarto romance, “O Solar dos Tarquínios”, que acabará “se Deus me der alguns anos de vida”. A ficção fala sobre uma família incapaz de morrer. Em 2014, a filha, Roseana Sarney, renunciou ao governo maranhense, pondo fim a um ciclo de quase 50 anos do clã no poder local.

Sarney é imortal. Ocupa a cadeira 38 —que já pertenceu a Santos Dumont e Graça Aranha— na Academia Brasileira de Letras desde 1980. Ao ganhá-la, discursou sobre “um sonho que se realizou e, como diz Jorge Luis Borges, quem realiza um sonho, constrói uma parcela de sua própria eternidade”.

O ex-presidente José Sarney fala sobre sua obra literária, em seu escritório em, Brasília

O ex-presidente José Sarney fala sobre sua obra literária, em seu escritório em, Brasília

 

Sarney quer ser eterno. Não pela política, que praticou ao longo de 60 anos e sete partidos (é do PMDB desde 1984), mas por obras com pitadas de realismo fantástico como “Saraminda” –a mulata dos “bicos dos seios amarelos como ouro bruto”, de pontas “altas, duras, roliças, que faiscavam como tição”.

Em 25 de outubro de 1996, o amigo Claude Lévi-Strauss (1908-2009) enviou uma carta manuscrita com elogios ao então presidente do Senado. Era “monumental” a edição francesa de “O Dono do Mar”, livro povoado por seres como Querente, que flutua pelo mar há 400 anos, e Zé do Casco, o violador de pescadores distraídos.

Já Millôr Fernandes (1923-2012) definia “Sir Ney” como autor de obras que seriam “motivos para impeachment”.

Sarney diz que “há mais de 30 anos não nasce um grande romancista”. Quanto a ele, paciência. “Quando o tempo afastar o político, o trabalhador das letras vai aparecer.”

MÁ VONTADE

Na quarta-feira (22), a dois dias de completar 85 anos, recebeu a Folha em seu escritório em Brasília, decorado com um crucifixo na parede e uma Bíblia na mesa.

“O presidente não está querendo dar entrevistas por esses dias, mas talvez abra uma exceção para falar de literatura”, explicou o assessor antes de combinar a entrevista.

Exceção aberta. Por uma hora, o ex-presidente e fã de “Dom Quixote” falou sobre sua saga literária, pouco conhecida no país que presidiu. “Havia má vontade. Não viam o escritor, viam o político.”

Sarney tomou gosto por biografias políticas –recentemente leu as de Getúlio Vargas, Josef Stálin e Tancredo Neves, fora “O Capital no Século 21″, de Thomas Piketty.

Sua própria passagem pelo cargo mais alto no país foi conturbada, diz. “Ninguém sabia, mas atravessava um período de grande depressão quando assumi a Presidência. Não passei pela crise dos 50 anos. Mas de repente, com 52, me surgiu. Era uma cobrança que fazia a mim mesmo do que tinha feito da minha vida.”

A cura veio pelas letras. Emposta a voz para recitar o poema “Garça Negra”: “Garça negra/ asas de fogo e silêncio/ noites de tédio e de calmantes/ não me busques”. “O Carl Jung dizia que todos morremos frustrados por não termos tido a vida que queríamos.”

Folha Jorge Amado disse certa vez que “José Sarney é um escritor a quem o político José Sarney tem causado graves prejuízos”. Concorda?

José Sarney O Napoleão dizia que política é destino, literatura, vocação. Eu me lembro da definição do Ernesto Sabato sobre literatura como antagonista da realidade. Mas a política tem dos dois. Teve a morte do Tancredo Neves [em 1985, antes de assumir a Presidência, abrindo espaço para ele, vice], em que a realidade imitou a ficção.

Folha Arrepende-se de ter privilegiado destino e não vocação?

José Sarney – Olhe, se Deus tivesse me perguntado se eu queria ficar com a literatura ou a política, teria escolhido a literatura. Não passou um dia sem que eu não tivesse um convite de noivado para a literatura. Calculo que passei 25% da vida lendo ou escrevendo. Não tenho nenhum outro hábito: não cultivo esporte, não costumo ir a cinema, teatro, não frequento restaurantes, não sou de dar recepções em casa.

Folha Terminou sua autobiografia?

José Sarney – Estou na fase de revisão, pois ela foi escrita durante muitos anos [desde 2003]. Sendo um intelectual, com o privilégio de participar da história do Brasil como assistente e até mesmo protagonista, não compreenderia se não deixasse um depoimento da minha visão do poder.

Pensei [no título] “Boa Noite, Presidente”. Adotei uma técnica para escrever. O primeiro capítulo sobre a noite da doença do Tancredo. O segundo, meu nascimento. O terceiro, meu governo… No fim, as partes se encontram.

Folha O senhor escreveu obras de realismo fantástico, como “Saraminda”. Encontrou na vida alguém tão mágico?

José Sarney – É fácil criar um drama que seja uma cópia da realidade. Difícil é criar um personagem. Eu consegui. De tal maneira me liguei a Saraminda que a minha mulher [dona Marly] dizia que já estava com ciúmes dela. “Você não larga essa mulata de jeito nenhum.”

Folha E como achou sua musa?

José Sarney – Fui até Caiena [capital da Guiana Francesa] pesquisar para o livro. Passa uma mulata muito bonita, e eu me senti seduzido. Ela, Saraminda, passou a existir. Arrematada no leilão de prostitutas onde o Cleito Bonfim pagou dez quilos de ouro por ela [no enredo do romance]. Seus seios tinham os bicos de ouro.

Folha Seus críticos sempre citam esse “erotismo light” na obra.

José Sarney – Descartes foi o grande filósofo que estabeleceu essa separação da alma e do corpo, embora eu seja católico e acredite que nunca podemos separar os dois. O próprio São Paulo disse: se não tivesse amor, de nada valia a vida.

Folha Desde “A Duquesa Vale uma Missa”, de 2007, o senhor não escreve ficção. Algo à vista?

José Sarney – Comecei “O Solar dos Tarquínios”, história de um sobradão construído junto com essa família que passa a viver muito e não morrer. Queriam, mas não morriam. Era a grande angústia deles.

Folha Tem livro seu até em romeno.

José Sarney – Fui traduzido em 13 línguas e tenho a grande satisfação de ser um dos poucos autores incluídos na Folio [coleção da editora francesa Gallimard, uma das mais importantes na Europa]. Inclusive tive críticas do Lévi-Strauss –tive a felicidade de ter sua amizade.

Folha Já no Brasil seus livros receberam críticas bem duras.

José Sarney – É aquela história: não leram e não gostaram. Não conheço um grande crítico brasileiro que tenha feito críticas contrárias aos meus livros. Apenas deixei de cultivar a divulgação no Brasil porque havia má vontade. Não viam o escritor, viam o político.

Folha O Millôr Fernandes escreveu que, quando se larga um livro seu, não se consegue mais pegar. Era seu melhor inimigo?

José Sarney – Ele não era crítico literário, ele era humorista.

Folha O senhor acompanha algo da nova literatura brasileira?

José Sarney – Confesso que estou na fase da releitura. Acho que passamos por um período de declínio. Há mais de 30 anos não nasce um grande romancista, poeta, pintor, músico.

Folha E o senhor, onde está?

José Sarney – Acho que quando o tempo afastar o político um pouco, a figura do trabalhador das letras vai aparecer.

Folha O que acha de biografias não autorizadas? Tem a de Palmério Dória sobre os Sarney (“Honoráveis Bandidos”).

José Sarney – Sou a favor da publicação de biografias, quaisquer que sejam. [A do Dória] não é biografia. É sobre políticos interessados em destruir imagens das pessoas.

Folha Comemora os 85 anos?

José Sarney – Agora não comemoro mais nem o mês nem o ano, e sim os dias. Minha mãe, quando morreu, deixou uma carta. A primeira coisa que disse: “Tive até um filho que foi da Academia Brasileira de Letras”. No Maranhão, quando se nasce, ninguém pensa em ser presidente, mas todos pensam em ir à Academia.

As parteiras já conhecem o choro dos meninos: “Academiiiiiiia”. Ninguém sabe, mas quando assumi a Presidência, atravessava um período de grande depressão.

Não passei pela crise dos 50 anos. Mas de repente, com 52, me surgiu essa depressão. Era uma cobrança que fazia a mim mesmo do que tinha feito da minha vida.

O Carl Jung, ao contrário do Freud, dizia que todos morremos frustrados por não termos tido a vida que queríamos.

SARNEY É POUCO ESTUDADO

Sarney virou imortal antes de publicar qualquer livro e de ingressar na política.

Tinha só 22 anos quando foi eleito para a Academia Maranhense de Letras, em 1953, em reconhecimento pelo ativismo cultural em São Luís, com a criação da revista “A Ilha” e do suplemento literário do jornal “O Imparcial”.

Embora o escritor seja anterior ao político –o livro de poemas “A Canção Inicial” é de 1954, um ano antes da estreia na vida pública–, a atuação no poder foi mais prolífica que a literária.

Tirando textos políticos e crônicas, foram três romances, três volumes de contos e três de poesia em seis décadas.

Publicada em boa parte pela antiga editora Siciliano, essa produção ficou anos fora de catálogo. Em 2014, a Leya, que já publicava parte de suas crônicas e seus ensaios, reeditou os romances “Saraminda” e “O Dono do Mar”.

Não é fácil encontrar quem tenha se dedicado a estudar esses livros. Dos quase 300 currículos da plataforma Lattes que têm alguma citação ao ex-presidente, menos de dez são de estudiosos da área de letras interessados em sua prosa –no geral, estudantes de graduação no Maranhão.

Em 1988, ao destrinchar os contos de “O Brejal dos Guajas”, Millôr Fernandes resumiu assim: “É uma anedotinha ‘socialzinha’ tolinha (já contada mais de um milhão de vezes) da briguinha de dois coroneizinhos de uma cidadezinha perdidinha no interiorzinho do Maranhão”.

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